As vanguardas e a dificuldade da imprensa padrão em interpretar a disputa social

Vanessa Pedro
8 min readJan 22, 2017

Os movimentos sociais em curso e em luta no Brasil e em diversas partes do mundo não apenas desafiam governos e estruturas que enfrentam e se contrapõem como também são um desafio de interpretação pra todo mundo. Para os que interpretam e escrevem a respeito, os que produzirão materiais de análise, de arte, informativos ou o que seja, com a intenção e na tentativa de explicar, posicionar, ver em perspectiva e observar o movimento das forças políticas, sociais e culturais. E também com o desejo de quase prever o desenrolar dessa disputa para saber que país e que sociedade teremos a seguir. Há análises que nos ajudam a perceber quem está nas ruas, o que está em jogo, nos fornecendo informações que não possuíamos antes e, especialmente, pontos de vista que não dispúnhamos. Mas e a grande imprensa? A imprensa padrão? Não sei se escolho bem a designação mas falo da imprensa que pretende hoje manter sua hegemonia de interpretação, nortear a sociedade para a ler os acontecimentos sociais e, ao mesmo tempo, tem dado maior espaço à análise de seus especialistas do que tem primado pela busca e checagem de informações, temas tão caros ao jornalismo clássico.

Pensando no que dizem Bird e Dardenne sobre a produção jornalística cotidiana como forma de dar tranquilidade, familiaridade e ordenação à sociedade, tenho observado como jornalistas e comentaristas dos grandes veículos, de grande audiência, especialmente de televisão, têm lido os movimentos sociais, suas manifestações e disputas. A capacidade de transformar a informação e a análise em afirmações precisas e simples no sentido do texto e da capacidade síntese têm dado lugar a uma falta de complexidade do olhar e a erros grosseiros mesmo. A perda da capacidade de análise tem sido proporcional talvez ao aumento do espaço para analistas televisivos. Quando na verdade deveria ser o oposto. Já que os comentaristas ganham espaço, espera-se que se qualifiquem nas suas análises, ângulos, objetos e caminhos pelos quais nos conduzem para olhar um acontecimento. Mas não. Penso também na reflexão de Ken Doctor para o Nieman Foudation, centro de estudos em jornalismo, relacionando a redução nos investimentos em produção de notícia e em contratação de jornalista com a queda da qualidade dos jornais, nacionais e também locais nos Estados Unidos. Ele diz que a redução do investimento não tinha como não resultar em um prejuízo para a sociedade. Acho que acontece o mesmo no Brasil.

Uma boa análise pode ser já produzida ao se observar a cobertura das movimentações de oposição ao governo Trump que começaram paralelas à sua posse no dia 20 e da anunciada Marcha das Mulheres, organizada e bem sucedida, para protestar contra as pautas anunciadas pelo novo governo no que se refere a direitos humanos, mudanças climáticas, imigração, saúde pública, enfim, praticamente todos os principais temas que o governo Obama e a sociedade americana conseguiram produzir conquistas. Na Globonews poderiam ter falado do protagonismo das mulheres, que no momento em que vários grupos são afetados, são a força social que assume a vanguarda do movimento. Poderiam comparar com o 2016 no Brasil, onde as mulheres foram também vanguarda da disputa política diversas vezes. Foi uma candidata mulher que perdeu as eleições nos Estados Unidos, mas que ganhou no voto popular. Foi no Brasil que foi derrubada uma presidenta e ascendeu uma nova figura de mulher como a atual primeira dama. Enfim, só pensando nas questões de gênero já se tem possibilidade de análise para um Jornal das Dez inteiro. Mas a escolha das análises, que reúnem jornalista em estúdio no Brasil e em outras cidades do país e dos Estados Unidos, é um descrédito de que a oposição ao governo gere algum tipo de freio ou de mudança no governo Trump. E não porque ele seja apenas impermeável, mas porque os jornalistas questionam a capacidade objetiva da oposição de gerar mudanças sociais. É o tal negócio. Quando Pedro fala de Paulo, isso fala mais sobre Pedro do que sobre Paulo. A questão não é a viabilidade dos protestos de demoverem Trump mas essa leitura nos leva a conhecer a capacidade (ou falta dela) dos analistas-jornalistas de entender o movimento social, suas possibilidades e complexidade.

A Globonews queria saber como objetivamente a oposição, materializada nos protestos de rua desde a posse de Trump, que teve a participação de atores e outros ícones da classe artística americana, irá conseguir alguma coisa com Trump. Um dos comentaristas parecia que esperava do movimento um poder objetivo e de decisão que apenas os governantes têm. E para além desse poder nada mais adiantaria. Talvez a questão fosse pensar que a democracia precisa ter ainda mais formas de participação direta e permanente do que apenas o voto para construir os rumos de um país e não deixar tudo na caneta do presidente. Avaliar que um presidente há tempo não era tão impopular e capaz de gerar, ao mesmo tempo, um esvaziamento de sua posse em comparação com o antecessor e protestos globais. Mas a ênfase foi sobre a ineficiência dos protestos. Muito diferente das coberturas que vimos meses antes no Brasil, cujo tom não apenas dos comentários mas de toda a movimentação de câmeras e repórteres e de tempo de cobertura incentivavam a participação e anunciavam que a pressão popular nas ruas, associada à própria cobertura, seria não só capaz de pressionar um governo por mudanças como derruba-lo. Quando os temas são direitos humanos, igualdade de gênero, defesa dos imigrantes e saúde pública, a falta de objetividade é apontada como motivo de ineficiência dos protestos. E não importa se há apoio dos famosos neste caso ou volume de pessoas nas ruas. A falta de uma suposta pauta objetiva ou de poder institucional condenará os protestos ao fracasso.

No dia seguinte a Marcha das Mulheres demonstra que tem mais consciência do complexo cenário político do que os analistas-jornalistas brasileiros. Antes de mais nada, estão as mulheres novamente na vanguarda da luta social contemporânea. Seja pela misoginia em alta ou pela capacidade histórica de auto-organização, os movimentos de mulheres têm sido a ponta dos protestos e da disputa política no Brasil e agora globalmente. Talvez também se explique porque é o movimento hoje que mais tem consciência e expressa sua diversidade ou da diversidade necessária e existente em qualquer coletivo. A Marcha das Mulheres Contra Trump demonstrou capacidade de reunir a complexidade dos que não apoiam os discursos preconceituosos do novo presidente ao mesmo tempo que avisam de início que as manifestações são afirmativas e maiores que o próprio Trump. E por isso se chama Marcha e não protesto. Porque querem defender direitos e dizem que “direito das mulheres é direitos humanos”. E traçam ações e defesas que pensam de forma ampla e também no cotidiano. Pensam sua atuação para além da reivindicação, não por não acreditarem na pressão sobre os governantes, mas porque fazerem parte de um processo que reflete sobre os mecanismos de autogestão social que se associe ao voto e que dê mais poder popular e à sociedade organizada. A lista de princípios trata de mudanças na Constituição com base na igualdade de gênero até defesas amplas sobre direitos dos imigrantes e da comunidade LGBT. A organização social que se traduz em demonstrações nas ruas, tomando este caso específico do momento americano mas também em outros cenários, considerando a sua diversidade e a complexidade de enfrentar o poder institucional, tem consciência do lugar onde atua. Os protestos anti-Trump e a Marcha das Mulheres têm um certo pragmatismo intrínseco à sociedade americana, e se constroi entre a pressão popular e as ações do cotidiano. O mais difícil é encontrar boas análises, especialmente no jornalismo standard, e neste texto em especial me refiro ao brasileiro, capazes de perceber essa diversidade, de avaliar papeis, limites e até possibilidade de ir além do que se possa considerar no caso de uma mobilização permanente. E diz mais ainda sobre como os mesmos comentaristas-jornalistas percebem a partir daí as manifestações populares no Brasil, a sua complexidade, idiossincrasias e como produz discursos que as acham eficientes quando derrubam governos populares mas ineficazes quando não são ‘objetivas’ ou enfrentam presidentes não permeáveis ou com maioria no Congresso Nacional.

O discurso standard do jornalismo tem dificuldade com análise, não consegue comentar sobre as forças sociais e sobre a permanente disputa que, sim, é desigual. Os protestos (lá ou cá) terão que ter grande volume para encarar a vitória de Trump e o poder que hoje ele manipula. Mas as pessoas, apesar de organizadas e buscando construir estratégias que garantam mais apoio popular para atingir as fissuras do poder, não protestam apenas pensando se são eficientes. Elas protestam porque é justo, porque têm uma ou várias causas, porque sozinhas jamais conseguiram nada e se quiserem que algo mude precisarão estar juntas.

O quanto é objetivo ou eficiente não deve ser cobrado. Apesar disso, e considerando a capacidade pragmatica da sociedade norte-americana, ouvi o trecho do discurso da atriz Scarlett Johansson quando pedia que no dia a dia as pessoas reforçassem o apoio a instituições que defem causas sociais e de direitos humanos, que doassem para essas causas, que se voluntariassem nas suas comunidades em instituições que trabalhassem pela igualdade de gênero e todas as lutas que estão ameaçadas com a chegada da Trump ao poder. Justamente pensando em resistir através da capacidade de construir a sociedade e a governança com outras ferramentas que contraponham um governo conservador com um governante fascista. Aliás, outro comentário dos jornalistas-comentaristas é que não se pode chamar Trump de fascista porque ele foi eleito. Para além da questão de que no voto popular ele ficou em segundo, não entenderam que uma pessoa, governante ou não, pode ser apontada como fascista se defender ou realizar atitudes ou políticas fascistas, mesmo que tenha ascendido ao poder através do voto. Os nazistas chegaram ao poder na Alemanha pelo voto popular, galgando ano após ano mais cadeiras do Parlamento alemão (o Reichstag). O jornalismo em crise passa por essa incapacidade de leitura social.

Fontes de imagens: jornais online como Público, Estadão, UOL, CNN.

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Vanessa Pedro

Jornalista, escritora, pesquisadora, produtora audiovisual. Dra. em Literatura. Autora dos docs Guerra.doc e Música de Menino. vanessapedro1975@gmail.com